Eduardo

Schenberg

Neurocientista e empreendedor
ACS Pharmacology and Translational Science, ACS Editors’ Choice / 2021
“Esta é uma tradução não oficial de um artigo publicado em uma revista da American Chemical Society (ACS). ACS não endossou o conteúdo desta tradução ou o contexto de sua publicação.”

Desde uma reportagem exótica na revista Life em 1957, os compostos químicos dos cogumelos Psilocybe foram alvo de dúzias de tentativas de patenteamento, mais recentemente para tratar depressão. Lamentavelmente, as comunidades indígenas Mazateca que desenvolveram e mantiveram  este conhecimento médico tradicional por milênios não são participantes de nenhuma destas patentes, apesar dos tratados internacionais garantindo direitos indígenas a seu patrimônio cultural imaterial.



Em 1957, a revista Life publicou uma das mais impactantes reportagens na história moderna dos psicodélicos. “Procurando os cogumelos mágicos” foi escrito por um então banqueiro da J.P.Morgan chamado R. Gordon Wasson. Dois anos depois da publicação, a psilocina e a psilocibina, os principais compostos químicos nos cogumelos, foram isolados, caracterizados, sintetizados e nomeados pelo químico Suíço Albert Hofmann na empresa farmacêutica Sandoz. A Sandoz rapidamente patenteou o procedimento de extração e um método para “tranquilização terapêutica”, fornecendo o medicamento em comprimidos sob o nome comercial Indocybin.


Seis décadas depois, empresários norte-americanos e europeus obtém retornos financeiros desproporcionais a partir dos psicodélicos. Em Outubro de 2020, uma das primeiras empresas farmacêuticas focadas no desenvolvimento da psilocibina para tratamento da depressão lançou ações na bolsa e atingiu avaliações de aproximadamente USD 1,5 bilhão. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a depressão afeta 264 milhões de pessoas no mundo e é a maior causa de incapacidade no planeta. Isto constitui um mercado que pode superar 200 bilhões de dólares somente nos EUA. Portanto, de uma perspectiva neoliberal os desenvolvimentos com psilocibina são considerados avanços significativos envolvendo etnofarmacologia, química, psicofarmacologia, toxicologia e psiquiatria.

De uma perspectiva indígena, a pesquisa com psilocibina e o desenvolvimento farmacêutico contam uma história de extrativismo, apropriação cultural, bioprospecção e colonização. No artigo na revista Life, R. Gordon Wasson escreveu sobre suas expedições para Oaxaca, no México, buscando os rituais e cogumelos sagrados do povo Mazateca e, aprendendo de uma curandeira que ele inicialmente protegeu com um pseudônimo, Eva Mednez. Ela guiou Wasson nas veladas sagradas, em troca da promessa de segredo, inclusive de nunca publicar fotos. Entretanto, Wasson quebrou sua promessa e revelou a identidade da curandeira, Maria Sabina, no segundo volume de seu livro "Cogumelos, Rússia e História". Ele também divulgou fotos dela e dos rituais amplamente, configurando portanto traição. Depois de sua visita na cidade de Huautla de Jimenez, seguiu-se conflito; Maria Sabina foi brevemente encarcerada e sua casa incendiada. Detalhes da história variam de acordo com diferentes biografias, mas os rituais sagrados dos Maztecas estavam escondidos há séculos. Muitas práticas espirituais indígenas fora burtalmente perseguidas e banidas durante a inquisição Espanhola e colonização; milhares foram brutalmente assassinados. Que estes rituais tenham sobrevivido os eventos desde a inquisição até a visita de Wasson revela a forte resiliência destes povos; para os Mazatecas, estes cogumelos e tradições ainda são sagrados e seu último recurso medicinal.

Menos de um mês após o artigo de Wasson em 13 de Maio de 1957, o Conselho de Administração da Repartição Internacional do Trabalho se reuniu em Geneva, Suíça, em 5 de Junho de 1957, para estabelecer a Convenção sobre as Populações Indígenas e Tribais, 1957Como o México aderiu em 01 de Junho de 1959, a convenção não pode ser aplicada retroativamente ao caso Wasson. Em 1989 esta convenção foi renomeada para Convenção Sobre os Povos Indígenas e Tribais, 1989. De acordo com o preâmbulo: “em diversas partes do mundo esses povos não podem gozar dos direitos humanos fundamentais no mesmo grau que o restante da população dos Estados onde moram e que suas leis, valores, costumes e perspectivas têm sofrido erosão freqüentemente”. A mesma convenção determinou que “deverão ser reconhecidos e protegidos os valores e práticas sociais, culturais religiosos e espirituais próprios dos
povos mencionados e dever-se-á levar na devida consideração a natureza dos problemas que lhes sejam apresentados, tanto coletiva como individualmente” (Artigo 5a) e que “os governos deverão: a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-Ios diretamente” (Artigo 6a).

Em 1992, 150 líderes mundiais assinaram a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) no Rio de Janeiro, que direciona os estados signatários, por suas legislações nacionais, a “Em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a repartição equitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e práticas;” (Artigo 8j)A CDB foi seguida por outros acordos como o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança (2000) e o Protocolo de Nagoya sobre Acesso a Recursos Genéticos e Repartição de Benefícios (2010).

Estes desenvolvimentos culminaram na Convenção da UNESCO para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial 2003 da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Em seu preâmbulo foi reconhecido que “as comunidades, em especial as indígenas, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos desempenham um importante papel na produção, salvaguarda, manutenção e recriação do patrimônio cultural imaterial, assim contribuindo para enriquecer a diversidade cultural e a criatividade humana”. Patrimônio cultural imaterial foi definido como as “as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural” (Artigo 2.1). Em 2007, a Declaração das Nações Unidas
sobre os Direitos dos Povos Indígenas (UNDRIP) foi adotada por uma maioria de 144 estados a favor e 4 votos contrários que posteriormente foram revertidos, estabelecendo que “Os povos indígenas têm o direito de praticar e revitalizar suas tradições e costumes culturais. Isso inclui o direito de manter, proteger e desenvolver as manifestações passadas,
presentes e futuras de suas culturas, tais como sítios arqueológicos e históricos, utensílios, desenhos, cerimônias, tecnologias, artes visuais e interpretativas e literaturas.” (Artigo 11.1) determinando que “Os Estados proporcionarão reparação por meio de mecanismos eficazes, que poderão incluir a restituição, estabelecidos conjuntamente com os povos indígenas, em relação aos bens culturais, intelectuais, religiosos e espirituais de que tenham sido privados sem o seu consentimento livre, prévio e informado, ou em violação às suas leis, tradições e costumes.” (Artigo 11.2).

Estes avanços significam que o conhecimento tradicional não é um mercado de livre acesso sem regulamentações. Os povos indígenas tem o direito de proteger, preservar e desenvolver suas práticas tradicionais e conhecimentos medicinais, e tem direito de se beneficiar de desenvolvimentos baseados no seu patrimônio cultural imaterial, incluindo suas práticas espirituais. De acordo com estes tratados e regulamentações, a bioprospecção deve incluir o consentimento prévio livre e esclarecido das comunidades envolvidas. A maioria das leis sobre o assunto foram desenvolvidas como consequência da CDB, atualmente um dos tratados internacionais com o maior número de signatários da história. Entretanto, restam debates e uma série de questões importantes sobre quais as melhores formas de se atingir consultas prévias e acordos justos, respeitando limites éticos, epistemológicos e ecológicos, e como apropriadamente repartir os benefícios no caso de propriedades privadas de corporações farmacêuticas fundamentadas no conhecimento coletivo cumulativo dos povos indígenas.

A pesquisa com psilocibina está se configurando como um projeto de bioprospecção que resulta na indústria farmacêutica perseguindo inovação através de direitos de propriedade intelectual sem planos de reciprocidade com ou compensação para as comunidades indígenas que protegeram as práticas tradicionais de uso dos cogumelos por milênios.

Portanto, é essencial reconsiderar a abordagem farmacêutica neoliberal, desde a ciência básica até a clínica, e as consequências de seus objetivos declarados. No caso da psilocibina, para a qual há ao menos 24 processos de patentes registradas, nenhum desenvolvedor de psilocibina fez qualquer aproximação legítima e acordos recíprocos com os Mazatecas, ou qualquer outra comunidade indígena.

Algumas considerações importantes se fazem necessárias, especialmente a respeito das muitas espécies de cogumelos hoje identificadas no gênero Psilocybe e a questão da espiritualidade. Os cogumelos extraídos de Huautla de Jimenez por Wasson foram a fonte da comodificação da psilocibina; foram identificados como Psilocibe mexicana, mas centenas de outros são conhecidos atualmente, alguns que podem inclusive ser cultivados em ambientes fechados. Entretanto, apesar de alguns desses serem endêmicos à região Européia, como por exemplo o Psilocybe semilanceata, registrado há séculos como intoxicante ou venenoso, houve pouco ou nenhum interesse em suas propriedades medicinais na literatura científica antes do relato histórico de Wasson, corroborando portanto o papel sine qua non dos Mazatecas em todos os desenvolvimentos futuros com psilocibina. Para os Mazatecas, os cogumelos são primariamente usados medicinalmente, para tratar pessoas doentes, mesmo que em um contexto e visão de mundo que acadêmicos classifiquem como espiritual. E apesar da ciência ocidental tender a negligenciar fatores espirituais em desenvolvimentos farmacêuticos, alguns dos mais importantes estudos com psilocibina focam exatamente no domínio da espiritualidade. Até mesmo pesquisas neurocientíficas revelam correlações entre experiências espirituais ou místicas com resultados de tratamentos para depressão.

Os desenvolvimentos científicos com psilocibina estão intimamente entrelaçados com o patrimônio cultural imaterial dos Mazatecas, levantando preocupações sobre danos causados pelo sistema de propriedade intelectual. Como o regime da biodiversidade pode ser aplicado para patentes futuras, mas não retroativamente para as patentes de isolamento obtidas pela Sandoz Ltd. em 1965, a questão é como proteger e desenvolver cerimônias tradicionais de forma útil e respeitosa com as comunidades indígenas? Por que a chamada renascença psicodélica, incluindo a comodificação, está beneficiando quase exclusivamente os empresários ocidentais não indígenas? Há alguma reparação ou restitutição a ser feita neste caso?

Expedições e atividades extrativistas continuam acontecendo em território Mazateca. Micólogos, biólogos, espeleólogos e cientistas visitam a comunidade Mazateca, sem pedir permissão deles ou adequadamente explicar suas pesquisas para a comunidade. Alguns pesquisadores afirmam ter recebido permissões e terem protocolos para trabalhar com comunidades indígenas, mas não está claro que tipo de permissão foi requerida ou de quem foi recebida. Alternativamente, um protocolo comunitário Mazateca poderia ser desenvolvido para fornecer consentimento a pesquisadores relacionado ao patrimônio cultural imaterial. A mentalidade ocidental colonial e racializada contribui para continuadas deslegitimações das comunidades indígenas e seus conhecimentos. Ocidentais racializam e desvalorizam, consciente ou inconscientemente, os conhecimentos dos indígenas ou "nobres selvagens". Pesquisadores ocidentais e cientistas dizem aos chojta chijne Mazatecas (os sábios) que estão a nomear incorretamente seus cogumelos e que desconhecem sua abrangência.

A depressão é considerada uma desordem baseada numa série de determinantes sociais, muitos dos quais podem ser dramaticamente exacerbados por empreitadas coloniais extrativistas. Notavelmente, estudos sobre depressão incluem causas como luto, perdas de relacionamentos significativos nas comunidades, solidão, estresse e história de abuso físico, mental e emocional. A bioprospecção e a biopirataria frequentemente causam conflitos, tensões, desconexão, pobreza e sofrimento nas comunidades de onde o conhecimento e tradição se originaram. Este sofrimento tem paralelo com nosso entendimento de como o ambiente cultural e social podem afetar a saúde mental. Em outras palavras, empreitadas extrativistas não consensuais com finalidades lucrativas e regimes de propriedade intelectual podem causar angústia intergeracional e sofrimento nas comunidades indígenas impactadas de forma que pode perpetuar transtornos mentais, enquanto separam estas comunidades de seu patrimônio cultural imaterial. Como a depressão perpetua e emerge de barreiras sócio-econômicas, a idéia de extrair seu tratamento de populações profundamente traumatizadas para beneficiar a atual economia de saúde revela um lapso ético da parte da maioria dos pesquisadores e cientistas ocidentais. As motivações por trás de negócios altamente lucrativos vendendo a psilocibina como panacea  do século nos força a questionar: serão estes tratamentos acessíveis para todas as camadas sociais, ou apenas para setores privilegiados da sociedade?

Buscando justiça, os Mazatecas devem ser beneficiados pela sua secular governança destes rituais e conhecimentos tradicionais. Desde que os rituais Mazatecas se tornaram públicos em 1957, ninguém buscou reparação ou reciprocidade de forma justa com as comunidades. Isso significa extração em todos os aspectos e significados, incluindo abuso da hospitalidade do povo Mazateca.

Conforme a terceira década do século 21  se desdobra, a sobrevivência dos povos indígenas e nosso ambiente natural está gravemente ameaçada por um nível sem precedentes de construções, minerações, atividades madeireiras e programas energéticos de "desenvolvimento" para o benefício de acionistas de corporações lucrativas. Quando a "propriedade" intelectual derivada de um composto natural é técnica anterior de povos indígenas, somos obrigados a explorar a ética de acionistas ganharem benefícios financeiros destes compostos. Refletir sobre estes dilemas éticos pode nos oferecer modelos para compreender e solucionar a continuada economia danosa e extrativista, e quiçá até apontar caminhos para acordos justos e recíprocos de reparação com os guardiões indígenas destas medicinas e moléculas ao redor do planeta.

“This is an unofficial translation of an article that appeared in an ACS publication. ACS has not endorsed the content of this translation or the context of its use.”
Preocupações éticas sobre patentes envolvendo a psilocibina

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